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Minha jovem, feche os olhos e deixe a imaginação fluir. Apenas escute. Pense em
todas aquelas pessoas mal-humoradas que passam por você pela rua, e talvez
acredite que não vale a pena sorrir. Talvez pense que não vale a pena tentar,
afinal, muitos já não conseguiram então, por que você, não é mesmo? Até que um
dia ao acordar, é com pesar que deixa as cobertas e coloca a roupa mais
confortável e apresentável que tiver para encarar o dia.
Corre
até a parada de ônibus, oh, você se atrasou. Por um acaso do destino, o
motorista conhece você e simplesmente para o ônibus que já arrancava, apenas
para lhe esperar. Você desconfia, mas agradece e senta-se num banco à esquerda.
Ao chegar perto do serviço, desce do veículo e deve passar por aquela banca de
jornal que cheira fortemente a tabaco. Antes de passar, pensa em atravessar a
rua apenas para evitar contato com o senhor que nunca lhe cumprimenta. A
preguiça de atravessar, porém, lhe toma e, hm, aquela manchete de jornal até
que está interessante. Checa os bolsos e pelo visto há algumas moedas que foram
o troco do seu café no dia anterior.
-
Não gosto de café, vô! O senhor deveria saber que crianças de onze anos não
tomam café.
-
Troco do picolé, pronto! Feche os olhos de novo. Bom, pega então um exemplar e,
com uma cara sonolenta demais para uma quinta-feira, vai pagar ao senhor
fumante. Meu Deus! Ele sorri para você e, que surpresa, os olhos dele são
escuros brilhantes, como você imaginava ser nas profundezas do oceano. Percebe
que nunca tinha os observado. Sorri de volta, um sorriso torto de gratidão pelo
jornal e vergonha por nunca antes ter tentado olhar aqueles olhos.
Caminhando
umas duas quadras, adentra o edifício em que trabalha e pensa em passar reto
pelas secretarias que numa constância estranha estão sempre lixando as unhas.
Porém, o dia mal começou e já a surpreendeu tanto, o que será que acontecerá se
cumprimentá-las? Acaba de descobrir que você subirá no elevador com um cookie
de chocolate nas mãos. Desde quando elas têm cookies?
Já
na sua sala, sua auxiliar de relatórios a espera com uma imensa papelada. Você
apenas sorri e diz:
-
É isso pra hoje?
Ao
passo que ela faz uma careta e responde:
-
Está tudo bem com você?
-
Digamos que o mundo parece estar ao meu favor.
A
auxiliar ri e então lhe diz:
-
Ou é porque acham estranho você usando pantufas de garrinhas com uma roupa
social.
Neste
momento, meu avô fez silêncio. Esperei ele continuar a narrar, mas olhei para o
lado e ele apenas me observava com um olhar curioso. Meu rosto devia estar
engraçado porque ele apenas desviou o olhar para pegar o dinheiro do ônibus que
chegava enquanto dizia:
- É uma metáfora, filha. Talvez você seja
muito pequena e eu, um velho caduco, mas o que mudara? O mundo todo, ou você?
Subimos
no ônibus e não pensamos mais na história. Dois anos depois, meu tio-avô partiu
sem me explicar a metáfora e, agora, quatro anos mais tarde, sinto sua falta e
um certo aperto, pois acho que entendi a história e queria ter a garantia de
que as pantufas chegariam em minhas mãos, um dia.